segunda-feira, 9 de maio de 2016

Ventania

*por Maria ElviraTavares Costa



Por aqui, tem ventado, Vento de tempestade...
Levantando saias e telhados.
Desmanchando cabelos
E acordos mal arranjados.
Venta, sopra, serpenteia.
Redemoinha, redemoinha, redemoinha...
Bate portas e janelas, Assusta empresas e assessores... E derruba coisas que se imaginavam Para sempre de pé.
Venta, sopra, serpenteia.
Redemoinha, redemoinha, redemoinha...
Vai virando correria.
Muita gente, no sem rumo, Procurando as coisas
Para tentar por no lugar...
Difícil é saber se, depois do vento passado,
Ainda haverá o lugar certo das coisas
Ou, até mesmo,
Se haverá coisas para se por nesse lugar...
Venta, sopra, serpenteia.
Redemoinha, redemoinha, redemoinha... E a gente só observando, em torcida organizada, que é pro vento continuar!
Vento, vento, ventania... Que papai chamava pelo assovio, Para as telhas cruas secar. Ah, meu pai poderoso, a quem Até o vento obedecia!
Conhecia assovio de chamar saci... E, logo, a poeira ventava, Girando, girando, redemoinhando...
(Mas, o moleque, mesmo, eu nunca vi!)
Ah, esse Vento...
Que saudade grande me trouxe...
Que esperança de vida nova!
Assovia, Pai, assovia!
Ajuda esse vento a ventar!
Venta vento, ventania!

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Madona

*por  Maria Elvira Tavares Costa

Eu visitava um Centro de Referência Social, um CRAS, da minha cidade. Lugar de atendimento às pessoas carentes. Conduziria uma oficina. Enquanto aguardava a chegada dos demais participantes, observei uma mulher que conversava entre outras mulheres. Pareceu-me que as divertia com suas histórias, um tanto bizarras. Todas biográficas. Fantasiosas ou não... Quem poderá estabelecer o agudo fio dessa navalha?

Alguém lhe perguntou qual a origem do seu codinome: “Madona”.

Sem rodeios nem timidez, a mulher, de idade indefinida, e de beleza ocultada pelas roupas brutas qual gari ou cortadora de cana, satisfez a curiosidade das ouvintes: Um homem lhe prometera dinheiro se ela fizesse aquelas coisas para ele. Ela fez. De volta ao bar, ele disse que não pagaria porque ela não sabia fazer as coisas direito.

Ela contava rindo.

- “Não vai pagar não? Então, tá!”

-“Peguei uma cadeira e quebrei nele. Deixei ele no chão, todo ensanguentado. Aí, tive que fugir. Minhas amigas foram comigo. Fomos para a BR, pegar carona de caminhão. Foi quando decidimos trocar de nome. Não podíamos usar os nossos mais. Cada uma escolheu o seu. Mas, foram elas que escolheram o meu. Porque eu tinha derrubado o sujeito, acharam que eu devia me chamar Madona. Eu não gostei não, mas, pegou...”

As moças continuaram se rindo. Não perceberam quando ela mudou o tom para contar outra história. Quanto a mim, ela já tinha me fisgado. Meus olhos não desgrudaram mais.

Ouvia – a fala correta, o português bem construído. Onde teria aprendido? Que passado teria existido antes desse presente que, naquele momento, eu testemunhava?

Observava. As tatuagens que as mangas arregaçadas permitiam enxergar. Os cabelos, louros, cobertos por uma touca. O rosto – o que seriam aquelas linhas que como que escorriam, uma de cada lado, como caminho de lágrima? Tatuagem antiga, azulada? Não consegui esclarecer. Mas, que imagem forte naquela face de tantas histórias...

Fiquei pensando na condição da prostituição e me perguntando como seria “fazer as coisas direito” para uma pessoa que vive em meio a tanta violência e agressões. Como fazer carinho? Como demonstrar afeto? Como fazer amor?

Ela não me deixou seguir por dentro. A história seguiu. As moças , me pareceu, nem a ouviam mais, talvez pelo tom. Eu a segui.

- “O pai da minha filha a roubou de mim. Ela tinha seis meses. Ele a levou embora. Meus peitos escorriam de leite. Eu enlouqueci. Saí procurando pelo Recife, até encontrar... Na casa da irmã dele. Ele era metido a rico... Eu meti o pé na porta. Forcei para entrar... Ela não queria deixar. Minha filha chorava – ela só tomava leite de peito, não aceitava mais nada. Ela estava com fome. E meus peitos estavam escorrendo leite. Eu mostrei prá dona da casa.

Eu falei o que ela estava fazendo. Ela trouxe minha filha. Ela logo veio pro meu peito. Eu saí correndo daquela casa. Sentei na calçada. Fiquei ali, amamentando minha filha e chorando. Nunca mais deixei o pai ver a filha. Nunca mais. Ela hoje tem 19 anos, e é uma moça linda!”

Madona, Ma Donna, Minha senhora... um dos nomes de Maria. Nome de Mãe!

"Eu vi minha mãe rezando,
Aos pés da Virgem Maria
Era uma santa escutando
O que outra santa dizia."



sexta-feira, 22 de abril de 2016

Menina

*por Maria Elvira Tavares Costa




Menina foi nascida lá prás bandas do norte do Estado, por volta de 1935.
Mãe negra, pai branco.


Família branca perseguiu a mãe até que ela abandonou tudo. 
Menina ficou para trás.


Foi levada para ser criada pela avó - a branca.
Mas... não era a neta, era, apenas, a filha da negra.


Roupa não tinha: vestia um saco de farinha com um buraco em cima, para passar a cabeça, e dois do lado, para os braços.
Não sabia o que era calcinha. Nem carinho. Menos ainda amor.


Servia para trabalhar: no roçado.


Aos 12 anos, um vizinho de 54 pediu ao pai prá casar com ela.
Cinquenta e quatro anos!
A avó, branca, achou boa a ideia: Menina dava muita despesa!


Mudaram a certidão de nascimento, que ainda nem tinha idade para poder casar. Mandaram fazer um vestido: que Menina teve de pagar, trabalhando por três meses a mais na roça da própria família.


Mas, valeu à pena! Era o seu primeiro vestido - e era lindo.


De casar, a menina sabia muito pouco: os bebês, para ela, ainda era a cegonha quem trazia. Achava que ia cozinhar, lavar a roupa e cuidar daquele homem de quem ela tomava a benção.


No dia da festa, faltou muito pouco para apanhar, mais uma vez, do pai. Mas, de tanto chorar, ele não bateu. Não mais ele.


Mudou de casa.
Encontrou, no centro espírita do seu novo dono, muitas mulheres que o beijavam na boca, à vista de todos. Não se incomodou - na verdade, nem sabia bem o que era tudo aquilo.


Cortou o vestido no comprimento - e não o tirou. Era o seu primeiro e único.


Dez dias se passaram sem que ele a tocasse. Até aquela tarde, em que ele chegou bêbado e a colheu em meio ao roçado.


Chegou por trás e lhe deu uma rasteira. Uma rasteira.


Ela caiu, assustada. Ele pulou sobre ela - animal na presa. Nos seus 12 anos. Ele, 54.


Ela gritou, ele a estapeou e a fez calar.


Dali para frente, seria sempre assim.


O vestido único se cobriu de sangue.


E quando o seu corpinho passou a menstruar, os filhos se sucederam - que a lavoura precisava de mão de obra. O marido decretou: a barriga não pode ficar vazia.


Ela me contou de 22 - mas, não sei se ouvi direito...


Depois de insuportáveis dias e anos iguais, os filhos maiores começaram a ir para a escola. Ela ia levar. Cabisbaixa, sem nunca conversar com ninguém. Só sabia trabalhar e obedecer.


Um dia, a Diretora da Escola estava esperando por ela no portão. Ai, que medo!


Diretora a levou para dentro, ela olhando pro chão. Diretora perguntou por que os filhos não faziam o dever de casa. Ela chorou. Diretora deu água e atenção, e descobriu que a menina-mãe não sabia ler, nem escrever.


Certamente, o caso de Menina devia ser corriqueiro naquela terra sem lei, naquele tempo tão mais desigual. Ou seria ainda hoje, mesmo assim?... Mas, aquela diretora entreviu a dor e a escravidão - e seu coração se comoveu.


Uma janela, lá no céu, começou a se abrir e deixar entrever o sol!


Perguntou se ela gostaria de estudar. Os olhos se arregalaram de surpresa e alegria - coração, que nunca pôde, quis sonhar... Mas, logo, o medo do algoz a fez estremecer. Diretora disse que dele ela daria conta.


Mas, foi o marido da diretora quem o deu. Fazendeiro, tratado por coronel. Importante. Cheio de jagunços. Procurou o sujeito. Disse que a menina precisava estudar prá poder ensinar o dever de casa para os filhos - senão, a diretora, mulher dele, ia ter problema na escola.


O cabra, que só era macho com menina desamparada, piou miudinho na frente do coronel.


Menina estudou. Menina aprendeu a ler. Menina aprendeu a sonhar.


Num mesmo ano, mudou de série mais de uma vez. Daí a pouco, já era a quinta.


Mas, um dia, a vida veio lhe lembrar o peso de sua mão!
E a filha mais velha, sua companheira, morreu afogada.


No dia seguinte, sabe-se lá por que coincidencia macabra... o velho também se foi. Coração explodiu... e a gente nem acreditava que ele tinha coração...


O mundo escureceu. Menina levava os filhos prá chorar no cemitério. Passava o dia na cova da filha - não sabia mais como viver. E as crianças, corriam, brincavam e se fartavam das muitas frutas tão bem adubadas daquele lugar... Mas, o coveiro se incomodou. Bagunça demais, podia não. Foi reclamar na igreja.


O padre se comoveu. Acolheu Menina e seus filhos na escola da congregação. Era o segundo milagre. Menina trabalhou prá comer, morar e estudar. Estudaram todos.


Um dia, o mais velho foi para as Forças Armadas, na cidade grande. Mais outros dias, e toda a família também para lá se foi.


Menina, linda!, já era professora e já podia trabalhar. 


Por lá, encontrou o verdadeiro companheiro, com quem teve mais uma filha, e de quem nunca mais se separou. 


Mudou de igreja, e na nova igreja, teve oportunidade de seguir estudando. Ele junto.


Fizeram teologia. Fizeram mestrado em teologia!


Vivem juntos, até hoje.
Menina tem filhos doutores. Emprego bom. E nunca mais deixou de sonhar.


Bonita, vaidosa – sempre arrumada e bem vestida. Quem vê Menina nem imagina.


Eu vi e ouvi! E conto para vocês.



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