sexta-feira, 22 de abril de 2016

Menina

*por Maria Elvira Tavares Costa




Menina foi nascida lá prás bandas do norte do Estado, por volta de 1935.
Mãe negra, pai branco.


Família branca perseguiu a mãe até que ela abandonou tudo. 
Menina ficou para trás.


Foi levada para ser criada pela avó - a branca.
Mas... não era a neta, era, apenas, a filha da negra.


Roupa não tinha: vestia um saco de farinha com um buraco em cima, para passar a cabeça, e dois do lado, para os braços.
Não sabia o que era calcinha. Nem carinho. Menos ainda amor.


Servia para trabalhar: no roçado.


Aos 12 anos, um vizinho de 54 pediu ao pai prá casar com ela.
Cinquenta e quatro anos!
A avó, branca, achou boa a ideia: Menina dava muita despesa!


Mudaram a certidão de nascimento, que ainda nem tinha idade para poder casar. Mandaram fazer um vestido: que Menina teve de pagar, trabalhando por três meses a mais na roça da própria família.


Mas, valeu à pena! Era o seu primeiro vestido - e era lindo.


De casar, a menina sabia muito pouco: os bebês, para ela, ainda era a cegonha quem trazia. Achava que ia cozinhar, lavar a roupa e cuidar daquele homem de quem ela tomava a benção.


No dia da festa, faltou muito pouco para apanhar, mais uma vez, do pai. Mas, de tanto chorar, ele não bateu. Não mais ele.


Mudou de casa.
Encontrou, no centro espírita do seu novo dono, muitas mulheres que o beijavam na boca, à vista de todos. Não se incomodou - na verdade, nem sabia bem o que era tudo aquilo.


Cortou o vestido no comprimento - e não o tirou. Era o seu primeiro e único.


Dez dias se passaram sem que ele a tocasse. Até aquela tarde, em que ele chegou bêbado e a colheu em meio ao roçado.


Chegou por trás e lhe deu uma rasteira. Uma rasteira.


Ela caiu, assustada. Ele pulou sobre ela - animal na presa. Nos seus 12 anos. Ele, 54.


Ela gritou, ele a estapeou e a fez calar.


Dali para frente, seria sempre assim.


O vestido único se cobriu de sangue.


E quando o seu corpinho passou a menstruar, os filhos se sucederam - que a lavoura precisava de mão de obra. O marido decretou: a barriga não pode ficar vazia.


Ela me contou de 22 - mas, não sei se ouvi direito...


Depois de insuportáveis dias e anos iguais, os filhos maiores começaram a ir para a escola. Ela ia levar. Cabisbaixa, sem nunca conversar com ninguém. Só sabia trabalhar e obedecer.


Um dia, a Diretora da Escola estava esperando por ela no portão. Ai, que medo!


Diretora a levou para dentro, ela olhando pro chão. Diretora perguntou por que os filhos não faziam o dever de casa. Ela chorou. Diretora deu água e atenção, e descobriu que a menina-mãe não sabia ler, nem escrever.


Certamente, o caso de Menina devia ser corriqueiro naquela terra sem lei, naquele tempo tão mais desigual. Ou seria ainda hoje, mesmo assim?... Mas, aquela diretora entreviu a dor e a escravidão - e seu coração se comoveu.


Uma janela, lá no céu, começou a se abrir e deixar entrever o sol!


Perguntou se ela gostaria de estudar. Os olhos se arregalaram de surpresa e alegria - coração, que nunca pôde, quis sonhar... Mas, logo, o medo do algoz a fez estremecer. Diretora disse que dele ela daria conta.


Mas, foi o marido da diretora quem o deu. Fazendeiro, tratado por coronel. Importante. Cheio de jagunços. Procurou o sujeito. Disse que a menina precisava estudar prá poder ensinar o dever de casa para os filhos - senão, a diretora, mulher dele, ia ter problema na escola.


O cabra, que só era macho com menina desamparada, piou miudinho na frente do coronel.


Menina estudou. Menina aprendeu a ler. Menina aprendeu a sonhar.


Num mesmo ano, mudou de série mais de uma vez. Daí a pouco, já era a quinta.


Mas, um dia, a vida veio lhe lembrar o peso de sua mão!
E a filha mais velha, sua companheira, morreu afogada.


No dia seguinte, sabe-se lá por que coincidencia macabra... o velho também se foi. Coração explodiu... e a gente nem acreditava que ele tinha coração...


O mundo escureceu. Menina levava os filhos prá chorar no cemitério. Passava o dia na cova da filha - não sabia mais como viver. E as crianças, corriam, brincavam e se fartavam das muitas frutas tão bem adubadas daquele lugar... Mas, o coveiro se incomodou. Bagunça demais, podia não. Foi reclamar na igreja.


O padre se comoveu. Acolheu Menina e seus filhos na escola da congregação. Era o segundo milagre. Menina trabalhou prá comer, morar e estudar. Estudaram todos.


Um dia, o mais velho foi para as Forças Armadas, na cidade grande. Mais outros dias, e toda a família também para lá se foi.


Menina, linda!, já era professora e já podia trabalhar. 


Por lá, encontrou o verdadeiro companheiro, com quem teve mais uma filha, e de quem nunca mais se separou. 


Mudou de igreja, e na nova igreja, teve oportunidade de seguir estudando. Ele junto.


Fizeram teologia. Fizeram mestrado em teologia!


Vivem juntos, até hoje.
Menina tem filhos doutores. Emprego bom. E nunca mais deixou de sonhar.


Bonita, vaidosa – sempre arrumada e bem vestida. Quem vê Menina nem imagina.


Eu vi e ouvi! E conto para vocês.



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